terça-feira, 6 de agosto de 2013

O COBRADOR VEM AÍ E ELE NÃO ESTÁ DE BRINCADEIRA


 

Tão me devendo colégio, namorada, aparelho de som, respeito, sanduíche de mortadela no botequim da rua Vieira Fazenda, sorvete, bola de futebol.” Este é um trecho do conto O cobrador, de Rubem Fonseca.

 O autor consegue criar um personagem saído do esgoto da humanidade pronto para cobrar todos que lhe devem alguma coisa. E é praticamente todo mundo, inclusive o marginal que lhe vende uma super arma.

E o cara da Mercedes que buzina e o assusta num momento em que ele estava se distraindo com uma esgarçada sensação de felicidade ao imaginar que, em minutos, estaria com a nova arma no bolso. Matou o sujeito.

A gênese desse sujeito obcecado em cobrar não importa. Se alguma circunstância familiar agravante detonou uma psicose, isso é tema para estudiosos de gabinete. E a conclusão a respeito não importa. O “cobrador” é verossímil, legítimo e reinventa o próprio ódio como espectador do templo do consumo. Ele conta:

“Quando minha cólera está diminuindo e eu perco a vontade de cobrar o que me devem eu sento na frente da televisão e em pouco tempo meu ódio volta. Quero muito pegar um camarada que faz anúncio de uísque. Ele está vestidinho, bonitinho, todo sanforizado, abraçado com uma loura reluzente, e joga pedrinhas de gelo num copo e sorri com todos os dentes, os dentes dele são certinhos e são verdadeiros, e eu quero pegar ele com a navalha e cortar os dois lados da bochecha até as orelhas, e aqueles dentes branquinhos vão todos ficar de fora num sorriso de caveira vermelha. Agora está ali, sorrindo, e logo beija a loura na boca. Não perde por esperar.”

O despojamento do autor do conto, ao não se preocupar com ser politicamente correto, com fazer denúncia ou ceder a qualquer elaboração intelectual ao longo da narrativa, é o que mais prende à leitura. E Fonseca consegue surpreender, como se já não bastasse tanto súbito em toda trama: o seu protagonista é poeta. Mesmo! Ele revela sua vocação a certa altura da estória, na casa de uma dona, uma dura, que o pegou na rua:

“Ela pergunta o que eu faço e digo que sou poeta, o que é rigorosamente verdade. Ela me pede que recite um poema meu. Eis: Os ricos gostam de dormir tarde/ apenas porque sabem que a corja/ tem que dormir cedo para trabalhar de manhã/ Essa é mais uma chance que eles/ têm de ser diferentes:/ parasitar,/ desprezar os que suam para ganhar a comida,/ dormir até tarde,/ tarde/ um dia/ ainda bem,/ demais./
Ela corta perguntando se gosto de cinema. E o poema? Ela não entende.”

Até aí, o cobrador não tem interlocutor, situa-se fora de qualquer média, acima dos perambulantes da rua como ele, abaixo dos intelectuais, acima dos pequeno-burgueses amantes de comerciais de TV e ignorantes dos direitos de um cidadão.

Não é possível dizer que dá pena ver ele errar na mão por buscar tudo no tiro, na ironia e no tapa. Na ironia porque ele não grita e sempre, ao final de cada ato, ri com descrença dos seus pares ou párias. Não dá para julgar criatura tão deformada pela existência. Chega um momento em que vem uma vontade de torcer para que ele saia daquele lugar onde foi parar. Mas se é um beco, podem pensar os mais apressados!

E daí nova surpresa,  outra bizarrice, desta vez confundida com final feliz. O cobrador ama e é correspondido. Extraordinariamente correspondido por uma branca, ressalta, que mora num prédio de mármore na zona sul do Rio. Vira amador além de cobrador.

Ana, a amada, que ele apelida de “palindrômica”, vai para o subúrbio morar com o delinqüente às vésperas do Natal. Surpresa, ela gosta de armas. Impregna o ar com proposta que cheira a ideologia, mas é pura anarquia. O cobrador agora amador pensa em profissionalizar o estilo. Mas não embarca nos sonhos, continua religioso na descrença.

Hoje é dia vinte e quatro de dezembro, dia do Baile de Natal ou Primeiro Grito de Carnaval. Ana Palindrômica saiu de casa e está morando comigo. Meu ódio agora é diferente. Tenho uma missão. Sempre tive uma missão e não sabia. Agora sei. Ana me ajudou a ver. Sei que se todo fodido fizesse como eu o mundo seria melhor e mais justo. Ana me ensinou a usar explosivos e acho que já estou preparado para essa mudança de escala. Matar um por um é coisa mística e disso eu me libertei. No Baile de Natal mataremos convencionalmente os que pudermos. Será o meu último gesto romântico inconseqüente. Escolhemos para iniciar a nova fase os compristas nojentos de um supermercado da zona sul. Serão mor­tos por uma bomba de alto poder explosivo. Adeus, meu facão, adeus meu punhal, meu rifle, meu Colt Cobra, adeus minha Magnum, hoje será o último dia em que vocês serão usados. Beijo o meu facão. Explodirei as pessoas, adquirirei prestigio; não serei apenas o louco da Magnum. Também não sairei mais pelo parque do Flamengo olhando as árvores; os troncos, a raiz, as folhas, a sombra, escolhendo a árvore que eu queria ter, que eu sempre quis ter, num pedaço de chão de terra batida. Eu as vi crescer no parque e me alegrava quando chovia e a terra se empapava de água, as folhas lavadas de chuva, o vento balançando os galhos, enquanto os carros dos canalhas passavam velozmente sem que eles olhas­sem para os lados. Já não perco meu tempo com sonhos.”

O final da história está no livro. O livro leva o nome do conto, O Cobrador. Vale a pena procurar o cobrador antes que ele procure por um de nós, afinal, ele não se aposentará enquanto persiste o império da injustiça social.


( Ilustração do Blog Via Literatura)



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