terça-feira, 19 de maio de 2015

SARTRE E SIMONE: A ESCRITA QUE SILENCIA DORES

Primeira foto do casal, 1929, acervo Simone de Beauvoir


Precocemente, me interessei pelo envelhecimento como tema de reportagem e estudo. Em 1986, escrevi um projeto que intitulei “A idade da razão”. Baseou-se na crise de meia-idade vivida por Jean-Paul Sartre e Simone de Beavoir. Eles estavam chegando aos 40 anos, não tinham reconhecimento público (Sartre principalmente contava com a fama, tendo em vista o assumido brilhantismo) e passaram a conviver com as dúvidas das escolhas.

Enquanto Sartre enfrentava até mesmo surtos psicóticos, Simone vivia a homossexualidade ainda incerta do tipo de relacionamento que estabelecera com Sartre e pressionada pelo relógio biológico.

Os dois, de certa forma, levaram suas questões para os livros e deixaram que os seus personagens confrontassem e exorcizassem as angústias. Sartre escreveu a trilogia “Caminhos da Liberdade”, inaugurada por “A idade da Razão”, de 1945. Simone lançou “Todos os homens são mortais” em 1946. As obras, principalmente as de Sartre, possuem evidentes traços autobiográficos.

Demônios apaziguados, os autores seguiram para novas angústias e obras. Não vou me aprofundar aqui -- mesmo porque o projeto tinha como objetivo mostrar que a “idade da razão” representava um ritual de passagem que poderia ser despertado mais tarde nos tempos modernos da juventude alongada--, mas retomo esse exemplo porque demonstra que a organização das ideias via escrita, com referências autobiográficas explícitas ou não, pode ser transformadora no sentido de libertar o autor de um estado opressivo de alma. 


Perceber-se, valorizar-se, criar um campo simbólico para a luta das ideias e sentimentos é regenerador. No caso do idoso, a biografia pode representar a sobrevivência emocional e, principalmente, a possibilidade de nova inserção social com fôlego protagonista.

domingo, 28 de setembro de 2014

ONDE POUSAM AS ASAS DO DESEJO?




Dias de resfriado e frio fora de hora. Setembro em que nasci e, neste ano, me traz a notícia da morte de um amigo. Daquele tipo de amigo que é amigo de todo mundo. Que se sabe introspectivo, porém dado a sorrisos. Estatura elevada, nunca passou despercebido, cabeça curvada, talvez para ser melhor escutado ou para se adaptar às medidas de um mundo que compacta até sentimentos só para aumentar espaço útil ao fútil.

Esse amigo morreu porque entendeu, não se sabe se explicou aos próximos, que devia partir. Partir para não sair do lugar, essa a definição que Valter Hugo Mãe faz da morte. Quem há de discordar?

Há quem imagine caminhos sinistros ou luminosos para os que morrem. Há quem idealize reencontros com esses. Outros não alimentam esperanças. Nem descrença. Apenas não sabem o que será.

Então o único fato da morte é o cemitério. Não vamos nos ater às urnas dos que optam por se tornar cinzas e que, romanticamente, expressam o desejo de ser despejados nos mares ou montanhas, nas paisagens que lhes acenam com o alento do descanso.

Para os que retornam ao pó da terra, a partida é ainda mais ilusória já que podem até mesmo ser visitados no túmulo: "a morte é mais o aprumado das campas como mesas postas ao contrário. mesas servidas a convidados nenhuns...", diz Valter Hugo Mãe.

O escritor português faz uma incursão sem retoques à velhice e à morte no livro "A máquina de fazer espanhóis" (Cosac Naify, 2011). Nascido em 1971, não foi apresentado, ainda, à terceira idade. Tampouco a viveu por meio do pai, que morreu cedo. É esta perda prematura, justamente, que leva Valter a inventar uma velhice para ele e seu pai. Um tipo de encontro em meio a reflexões sobre temas que desonhece.

Mas o que é verdadeiramente desconhecido para a sensibilidade de um escritor? Viagens para destinos exóticos no mundo, talvez, mas o prosaico da vida se revela a seu jeito. É o que este livro comprova. Preconiza que a memória é um jeito de existir e descreve memórias do futuro em que o autor enfim será um velho, talvez viúvo de um grande amor, encostado num asilo pela família, como peça de mobiliário em dissonância com o design moderno.

É tudo um susto, ou sucessivos sustos, com os quais o protagonista é forçado a se acostumar. Um dia se assenta no desconforto dos 84 anos e ensina: "andar pelo cemitério é a última coisa de velho a entrar-nos na cabeça. é o que verdadeiramente nos torna velhos sem regresso, diferentes dos outros humanos. afeiçoamo-nos à morte. é como se fôssemos cortejando a confiança dessa desconhecida, para nos encantarmos, quem sabe. ou para percebermos como lhe poderemos escapar ainda. coisas diversas e complementares, porque os nossos sentimentos vão oscilando entre uma necessidade de ultrapassar o impasse do fim da vida, e o trágico de que isso se reveste."

domingo, 17 de agosto de 2014

CONHECER UMA MULHER



Sou eu apenas ou será que todo mundo já teve essa experiência de, um dia, adentrar um livro como quem pousa os pés num santuário proibido, que extasia tanto quanto esgota as forças? Então a leitura se torna tensa, urgente como se a vida pudesse esperar a vez, pacientemente ao lado da cama ou da poltrona, até ser retomada.

Geralmente, não são livros com histórias cheias de ação, como as narrativas mais apreciadas. São páginas que desvelam camadas de nós, leitores, e não dos personagens. Porque se trata de uma grande alquimia em que não o enredo, mas o leitor é que se transforma, chegando a um final inesperado. Que independe dos poucos (ou muitos) fatos apresentados, mas de um conhecimento que se apropria de nós. Ou nós é que nos apropriamos dele. Não sei bem.

Só sei que sempre busquei escrever melhor, até por força da profissão. Nunca supus que o fundamental fosse ler cada vez melhor. E ler no sentido amplo de conhecer. Conhecer nós mesmos, conhecer o próximo, conhecer o estranho que vive na proximidade.

Tudo isso nos levará ao bom da vida. Eu me atrevo a selecionar três trechos de um livro que merece ser lido, porque certamente pode proporcionar essa experiência mística do desvendar da alma.

O primeiro trecho é da página 128, quando eu comecei a compreender no que estava me metendo. Precisa ter paciência, vale a pena.

O terceiro trecho está na página 195, a trinta páginas do final do livro, que ainda não li. Vou deixar para o momento em que me deitar como quem deixa por último o mais gostoso bombom da caixa.

Não me sinto confortável ao revelar o que a capa de um livro esconde, principalmente porque estou oferecendo uma pálida amostra do que, no meu entender, é um formidável espetáculo para os sentidos. Como posso ter certeza de que estou certa? Não estou. Aliás, o protagonista, quando começa a ler e a gostar de poesia, faz o mesmo questionamento: “Como poderei ter certeza de que o que estou entendendo é o que o poeta está querendo dizer?”
Para quem consegue viver com as incertezas, recomendo: “Conhecer uma mulher”, Amós Oz, Companhia das Letras,

A busca

“Diga, você se lembra, filha, o que Vitkin costumava dizer para você quando vinha à nossa casa tocar violão ao entardecer? Você se lembra das palavras dele: ele dizia: vim procurar sinais de vida. Eu também cheguei a isso. É o que estou procurando agora. Mas não há pressa. Amanhã é outro dia. Tenho vontade de ficar em casa e não fazer nada por mais alguns meses. Ou anos. Ou para sempre. Até que eu consiga perceber o que está acontecendo. O que é que tem? Ou me convencer pessoalmente, pela experiência, que é impossível descobrir qualquer coisa. Que seja. Veremos.”

(Pág. 128)

A falta

“Você é um cara inteligente, perspicaz até, um cara legal. Não tem dúvida. Direito como uma tábua. Um cara cem por cento. Mas o problema é que te faltam três coisas muito sérias: primeiro, desejo. Segundo, alegria. Terceiro, pena. Se você me perguntar, Capitão, estas três coisas vêm juntas, num só pacote. Digamos, se falta o número dois, então também faltam o um e o três. A tua situação é trágica.”

(Pág.161)

O encontro

“Lentamente começou a confiar nela e a revelar-lhe quais eram suas fraquezas. Pediu a ela prazeres físicos secretos, os quais, durante todos os anos, teve muito embaraço em pedir à esposa, e muita delicadeza para impô-los a mulheres passageiras. Annemarie, de olhos fechados, se concentrava. Captava cada som e cada nota. Submetia-se e tocava para ele melodias pelas quais ele própria não sabia o quanto ansiava que ela tocasse. Às vezes, ela parecia não estar fazendo amor com ele, mas concebendo-o e dando à luz”

(Pág. 195)

sábado, 16 de agosto de 2014

A CLÍNICA QUE VIROU CONDOMÍNIO DE LOUCOS





“Aquilo que jaz no coração de todas as coisas vivas não é uma chama, nem um hálito quente, nem uma faísca de vida, e sim a informação, palavras, instruções.” (Richard Dawkins)

 
Dr Franco da Rocha chegou. A recepcionista gritou e até o louco com pés amarrados aos pés da cadeira se assustou, calou o urro cotidiano por conta própria, não precisou injeção. Dr Marcondes recebeu o colega no meio do corredor, puxou-o para um canto mal iluminado, cochichou veja quem está no quarto em frente. Dona Ribimbóxa. Não era o nome verdadeiro, claro, mas o apelido da matriarca no meio médico.

A mulher cuspiu a dentadura modelada na França a preço de ouro na botina do enfermeiro, que tentava controlar a encrenqueira. Os dois médicos famosos cada qual na sua banda sabiam que iriam lidar com a criatura mais extraordinariamente conhecida na época. Campeã em capa de jornalões, em viagens à Europa, em festas para mais de 500 pessoas, em doações de toda monta para a pesquisa médica.

A filha morreu aos 16, afogada no rio que passava pela propriedade da família. Esta, a notícia oficial, o que de fato ocorrera  -- e disso poucos sabiam -- fora a súbita e irreprimível paixão da menina por um trapezista de circo. O bando de ciganos passou por Pindamonhangaba e dali voltou à estrada com mais um integrante. Dizem que bailarina.

Dona Ribimbóxa se aterrorizou muito mais com a possibilidade de escândalo do que com a perda da filha, pagou mundos e fundos para comprovar um falso atestado de óbito. Convenceu a população valedoparaibana que, compadecida, até deu o nome da pseudofalecida a uma escola de alfabetização para adultos.

A velha senhora tratou de continuar seu circo particular pela vida, não imaginou que tanto faria a ponto de ser despachada pelos seus para um sanatório. Naquele tempo em que a loucura tinha até grau de contágio, diagnosticada por meio de saliva, diziam médicos sem diploma de doutor, qualquer sujeito ou sujeita que ultrapassasse o limite do que era socialmente definido como saudável corria o risco de escafeder-se para sempre num sanatório. Dona Ribimbóxa ultrapassava definitivamente todo limite, ah, como ultrapassava, pois tinha dinheiro. E tanto fez que chegou àquele insuspeito destino, alguém se indignou com tanto excesso e a despachara para a casa de máxima segurança clínica na zona oeste da capital paulista. Dama fina de alto escalão, fingidora até diante do espelho na pia do próprio banheiro, esta a mulher que agora precisavam deter. Nunca soltou uma lágrima, disso se orgulhava.

Dr Marcondes colou o queixo no peito, de tanto que se curvou, culpava-se pelo parentesco com a matrona de pele de alabastro e coices de mula. A tentativa de fingir que a realidade não existia cobrindo-a com um imenso lençol de fantasia, tal e qual os panos com que se cobria mobília de família desaparecida em tragédia natural ou bélica, essa tentativa era tão tipicamente ribimboxiana (continuemos com o codinome já que não se pode nomear demônios sem que sejam chamados à cena) que ninguém queria identificá-la como louca, sob pena de ser assassinado por um cabra de aluguel a mando da mulher e seus asseclas.

Décadas dessa desconjuntura deram no que deram: o conhecido asilo de loucos, ou clínica de doenças nervosas, como a oligarquia preferir, recebia entre seus humildes clientes a criatura tão sobejamente bafejada, supunham, pela sorte.  Como já haviam feito com a filha, os familiares providenciaram novo atestado de óbito: a mãe afinal sucumbira à dor, o coração tivera um colapso.

Houve um enterro na cidade natal, com pompa. A dentadura paga ricamente foi parar no lixo hospitalar, dali roubada e vendida num rincão do Brasil a uma mulher que tinha arcada dentária quase igual. A sertaneja riu como o mar aberto na costa do seu estado natal, já a interiorana definhou em meio a pelancas da antiga gordura.

Emagrecida, velha como veio seco de rio seco, até a morte com quase cem anos esconjurou cada um que cruzasse seu caminho, aconselhava os incautos sabe com quem está tratando? Com a mulher mais rica desse país talvez do planeta. O pior é que era verdade, até hoje a fortuna da família financia a política, mas para efeitos “legais” ninguém dessa família foi, é ou será louco. Apenas desapartados de sentimentos exaltados, no mais, acercam-se de finura e elegância. Todos encantadores.

Nem meio século depois, o sanatório já não existe. O Dr Franco da Rocha virou nome de rua e de uma cidade na redondeza da capital paulista, honrarias extremas, já a falecida rica que alojou por quatro décadas não descansou: continua a perambular no quarteirão que se tornou um bem-sucedido condomínio classe média de arranha-céus, praticamente os primeiros do bairro.  Na mesma medida em que os prédios arranham os céus, as almas que estiveram no antigo sanatório chafurdam a pedra de fundação da casa de saúde, seus urros chegam aos ouvidos dos atuais moradores como zumbido de pernilongo. Ninguém identifica, mas todos odeiam a picada quando a reconhecem. Muitos morrem com choque anafilático.  Outros enlouquecem e protagonizam tragédia moderna. Dona Ribimbóxa lidera os zumbis. 
 
 


A história acima é uma ficção, mas os médicos citados são reais e introduziram a psiquiatria na capital paulista.



Claro Marcondes Homem de Mello nasceu em 5 de novembro de 1866 na cidade de Pindamonhangaba (SP). Formou-se em Medicina e fundou uma casa de saúde no bairro de Perdizes, onde fica a rua que leva hoje seu nome. A clínica ocupava todo o quarteirão entre as ruas Homem de Mello, Franco da Rocha, João Ramalho e Ministro Godói . Também trabalhou no Hospício dos Alienados. Morreu em 23 de fevereiro de 1924. (Fonte: www.homemdemello.com.br/drhomemmello.html).

Francisco Franco da Rocha, profundo humanista, foi membro da Academia Paulista de Letras: ocupou a Cadeira número 3, que tem como Patrono Matias Aires, tendo sido fundada por Luiz Pereira Barreto e, em seguida, conquistada por Alfredo Pujol antes de Franco da Rocha. Sucederam a Franco da Rocha, na Cadeira número 3, Mário de Andrade, Washington Luiz Pereira de Souza e, Lucas Nogueira Garcez. A propósito de Franco da Rocha literato, Lucas Nogueira Garcez, no discurso de ingresso na Academia, em 1958, comentou: “Nas suas obras descobre-se a vocação do escritor: lê-se o “Pansexualismo de Freud” com o prazer de quem saboreia uma verdadeira obra literária". Quando Franco da Rocha faleceu em São Paulo, em conseqüência de enfisema pulmonar, aos 69 anos de idade, em 8 de novembro de 1933, era preciso concordar com a oração fúnebre de Ulysses Paranhos que, em síntese crítica, proclamou-o Pai da Psiquiatria Paulista. (Fonte: http://www.polbr.med.br/ano03/wal0403.php)


 
 

 

terça-feira, 12 de agosto de 2014

ESCREVER É "OUTRAR", PARA AMÓS OZ

 


“O bom humor é o melhor antídoto contra o fanatismo”. A frase é do escritor Amós Oz, a quem recorro para escapar do fanatismo que as redes sociais praticam. E na qual todos nos enredamos de vez em quando ou muitas vezes. Fugir do fanatismo não é se isolar no pico da indiferença, mas se solidarizar a partir do cada vez mais raro – e dificílimo – exercício da empatia.   

A seguir, mais Oz para quem gosta de ler, escrever e pensar mais do que reproduzir opiniões de terceiros nas redes sociais. São versões, livres, que fiz do inglês, reassistindo ao programa Roda-Viva (TV Cultura) de 2012:

“Quando volto da minha caminhada no deserto a cada manhã, tomo a minha xícara de café, sento-me à escrivaninha e começo a me perguntar: e se eu fosse ele? E se eu fosse ela? E se eu fosse eles? E me coloco no lugar de cada um deles enquanto escrevo”.

“Não me preocupo com a repercussão que a opinião de um personagem pode ter, porque ele não me representa. Eu não defendo pontos de vista na literatura; defendo-os em artigos”.

“Eu acredito no leitor que se pergunta: que parte do livro é relevante para a minha vida?”

“Há algo curioso sobre os prêmios literários: você os recebe por algo que não poderia deixar de fazer. É como ser recompensado por respirar. Se, em vez de prêmios, eu recebesse penalidades pelas quais tivesse que pagar, ainda assim eu não deixaria de escrever.”

“A tragédia e a comédia não são dois planetas diferentes, mas duas janelas que apresentam diferentes ângulos de uma mesma paisagem”.

“Eu defendo a arte de fazer concessões porque todas as pessoas estão certas em relação a um tema, não 100% certas, mas podem estar 50% certas e isso é o bastante para que sejam ouvidas”.

“Eu não escrevo histórias sobre mocinhos contra bandidos, escrevo sobre os conflitos entre o certo e o certo. Esta é a natureza da tragédia, o confronto entre duas reivindicações poderosas”.

“Eu escrevo comédias trágicas. E não escrevo um parágrafo devastador seguido por outro engraçado, eu escrevo um mesmo parágrafo que seja doloroso e engraçado.”

“Não conheço fanáticos bem-humorados e nunca conheci alguém com senso de humor que tenha se tornado fanático.”

(Amós Oz)

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

VIRGINIA WOOLF: A INSIDIOSA VISITA DA MORTE




Uma cobra abocanha um sapo, que fica entalado na sua garganta. A cobra é voraz, o sapo não se entrega, a cobra engasga e enjoa. O sapo agoniza.

Esta imagem real, que a escritora britânica Virginia Woolf presenciou com seu marido, Leonard, num brejo, acompanhou-a até o final da vida, tornando-se uma cena de seu último livro, Pointz Hall. Representa o imperialismo de todos os tempos, vitimando países e populações, além de culturas. E extirpa os valores humanos pela raiz a pretexto de salvar o homem.

Na época da visão da cobra e o sapo, início dos anos 1930, uma crise econômica de grandes proporções assolava a Inglaterra e o mundo capitalista. Estopim da bomba? De uma delas, são tantas, e quando finalmente nos alvejam é tarde demais. São ignorados todos os sinais de decadência de valores e de acirramento de sentimentos extremistas. A guerra é insidiosa e se entremeia ao cotidiano com suavidade tenaz, em princípio, escamoteando a realidade, sempre com a cumplicidade da mídia de velas infladas na direção de ventos e interesses a favor.

Virginia tinha seu próprio e obstinado modo de leitura do noticiário, discernindo fato de fantasia. Temia tanto a invasão nazista quanto a propaganda inglesa e sua fogosa produção de heróis. Os heróis de hoje, pensava, talvez sejam os párias de amanhã, tocando realejos para sobreviver. Sabia, por experiência, como é sinistro o destino dos veteranos de guerra.

Virginia atravessou as sombras do cotidiano em meio às cisões, “a separação entre os reinos da grandeza e da pequeneza”. Nessa gangorra de sobressaltos, as contradições se aguçavam, especialmente na alma de uma artista como Virginia. Ela então milita, revê padrões, viaja ao passado na falta de perspectivas do presente, resgata a dor que acalentou a duras penas na vivência da Primeira Guerra. Psicanalisa, conclui que o peso do sofrimento do pai, também escritor, a condenou a viver em uma estufa emocional e intelectual. Que finalmente se estilhaça na chegada dos 50 anos.

"Todas as vaidades são menos que um caramujo na Zínia", escreveu Virginia Woolf a sua irmã, Vanessa, nessa idade, redimensionando os campos e superposições da existência. Alardeou que o alheamento não é alternativa para o artista, um ser amalgamado com as paixões humanas, por isso mesmo aprofunda a sensibilidade em tempos de sofrimento. A saída é optar pelo caminho possível, que é a política. E Virginia o trilhou.

Persistiu, produziu muito, sofreu e enlutou nos anos que finalmente culminaram na guerra declarada e em uma sociedade em desordem na qual o suicídio era assunto corrente. Em 14 de junho de 1940, as tropas nazistas tomaram a cidade de Paris, acuando a escritora e toda sua esperança de livramento do desespero interior.

Em 28 de março de 1941, retomando a cobra e o sapo, que a levaram a um pesadelo em que uma pessoa se lançava ao mar, descobriu que essa pessoa era ela mesma. Mergulhou no lago com pedras nos bolsos, asfixiou-se com a água e com a genialidade que escapa a classes sociais, escolhas políticas e sobretudo à mesquinhez da raça humana. Não quis punir ninguém, deixou cartas de amor para o marido e a irmã.


“Se eu não sofresse tanto, não poderia ser feliz”

(Virginia Woolf, em seu diário)

domingo, 10 de agosto de 2014

A TENTAÇÃO DE MATUSALÉM

 

Está na Bíblia: Matusalém foi o homem mais velho a morrer nesse planeta, tinha 969 anos. Era filho de Enoque, um bom servo de Deus, que foi arrebatado aos céus, não passou pela morte. O homem mais velho do mundo inspirou um conto, “A morte de Matusalém”, de Isaac Bashevis Singer, autor  que ganhou Prêmio Nobel.
 
O conto faz uma alegoria da vida humana na Terra, das contradições da carne, mistura de desejo e amor, ética e corrupção, meias verdades e mentiras inteiras, bondade e benevolência com o mal. Aos 969 anos, Matusalém só espera pela morte no seu abafado casebre: chega Naamá, a belíssima mulher que ele deseja já, literalmente, há séculos. Ela mora na terra de Caim, que se casou com Lilith, a Eva negra, luxuriosa. Os homens na terra de Caim convivem com demônios, assim como no nosso mundo, de Adão, os homens supostamente, convivem com anjos. Da trama engraçada vem a interpretação da perfeita alegoria que é a vida do homem no mundo. Matusalém era avô de Noé, que já se empenhava na missão de construir a arca do dilúvio, porque Deus estava arrependido de sua descendência na terra, queria ter a chance de recomeçar.
 
Matusalém, depois de transar com Naamá, conhecer a terra de Caim, cheia de demônios e todas as barbaridades que, afinal, estão adormecidas dentro de cada ser humano, decidiu que só queria saber mesmo da morte honesta, estava muito velho para farras e para entender um mundo tão caótico. Pede para voltar à sua casa e amanhece morto no dia seguinte. Seus pensamentos ficam planando à volta do corpo exaurido, pronto para os vermes, ele pensa que todo castigo de Deus, como o dilúvio, é vão, porque desde o princípio carne e corrupção são uma coisa só. Por mais que os filhos de Adão tenham boas intenções, seu dom da razão é precário, as ilusões de espaço e de tempo os esvazia de propósito ou justiça.
 
 
Reprodução da obra "Lilith", de John Collier, 1887
 
 

MEDO DE AMAR

"Une premiere" Anders Zorn -1888

Um bando de moleques na beira do rio e um deles não sabia nadar. Como é que um menino de sete anos, de estatura baixa para a idade, com mãe morta no parto e pai que sumiu no mundo pode não acompanhar a turma em uma aventura sem ser chamado de covarde?

Uma mistura de ingenuidade com arrogância sempre dominou a criança, que chegou a deixar a vila uns três anos antes, em direção ao sul, de navio, escoltado pelo pai, o próprio. Jamais se esqueceria da cena, talvez a mais feliz de toda a sua vida, pensou no mesmo instante em que ia tirando a roupa para pular na água. A lua estava no céu e o sol se punha lentamente, espumando em cores nervosas no horizonte atarracado com o convés. Rio de Janeiro, isso mesmo, este, o destino. Desembarcaram só para, nem dois meses depois, o pai se apaixonar por uma estranha.

Obedeceu o coração e a mulher, enviando o filho de volta para o sertão junto com um conhecido. No caminho, sacolejando no ônibus que cheirava mal, o garoto comparava o por do sol...sim, o que se avistava tinha sua beleza, mas o da chegada à cidade grande tomava a maior parte da sua memória de coisas boas.

Voltou à tarefa, cueca no chão, não tinha mais desculpa, era mergulhar ou apanhar. Pulou sem uma noção precisa do que estava fazendo, talvez quisesse morrer. A correnteza o levou, tudo escureceu como lamparina que fica sem azeite no meio do mato. Recobrou os sentidos com o tranco da curva do rio, que segurou firme seu pequeno corpo como talvez a alma de mãe no céu o fizesse. Ou tenha feito.

Desenroscou-se dos galhos, detritos, escalou um pedacinho de ribanceira. Percebeu que tinha se afastado quase 500 metros do ponto em que saltara para o susto.

Tornou a se assustar quando viu que sua roupa tinha sido levada. Nu e à margem, decidiu sem opção rumar para casa, buscando sombras e beirada de muro onde se esconder. Estava bem próximo de ser bem-sucedido no esforço quando a tia gritou, chamando a atenção -- pareceu à criança -- até de quem estivesse dentro de casa no outro lado da cidade.

Recolheu-se, foi recolhido, nunca mais ensolarou até decifrar a cidade de pedra, para onde se mudou, cresceu, estudou, casou, teve filhos, netos, e cumpriu a determinação férrea de não lamentar passado. Comprometeu-se com a felicidade por decreto e pouco se desviou nem das cláusulas minúsculas no rodapé. Quando de novo submergiu nu até o pescoço não estava nem no Rio de Janeiro nem no da infância. Resgatado aos gritos pela vida, foi repreendido pela alma da mãe: “quando é que vai aprender a nadar?”

                                                                        (...)

 

terça-feira, 6 de agosto de 2013

O COBRADOR VEM AÍ E ELE NÃO ESTÁ DE BRINCADEIRA


 

Tão me devendo colégio, namorada, aparelho de som, respeito, sanduíche de mortadela no botequim da rua Vieira Fazenda, sorvete, bola de futebol.” Este é um trecho do conto O cobrador, de Rubem Fonseca.

 O autor consegue criar um personagem saído do esgoto da humanidade pronto para cobrar todos que lhe devem alguma coisa. E é praticamente todo mundo, inclusive o marginal que lhe vende uma super arma.

E o cara da Mercedes que buzina e o assusta num momento em que ele estava se distraindo com uma esgarçada sensação de felicidade ao imaginar que, em minutos, estaria com a nova arma no bolso. Matou o sujeito.

A gênese desse sujeito obcecado em cobrar não importa. Se alguma circunstância familiar agravante detonou uma psicose, isso é tema para estudiosos de gabinete. E a conclusão a respeito não importa. O “cobrador” é verossímil, legítimo e reinventa o próprio ódio como espectador do templo do consumo. Ele conta:

“Quando minha cólera está diminuindo e eu perco a vontade de cobrar o que me devem eu sento na frente da televisão e em pouco tempo meu ódio volta. Quero muito pegar um camarada que faz anúncio de uísque. Ele está vestidinho, bonitinho, todo sanforizado, abraçado com uma loura reluzente, e joga pedrinhas de gelo num copo e sorri com todos os dentes, os dentes dele são certinhos e são verdadeiros, e eu quero pegar ele com a navalha e cortar os dois lados da bochecha até as orelhas, e aqueles dentes branquinhos vão todos ficar de fora num sorriso de caveira vermelha. Agora está ali, sorrindo, e logo beija a loura na boca. Não perde por esperar.”

O despojamento do autor do conto, ao não se preocupar com ser politicamente correto, com fazer denúncia ou ceder a qualquer elaboração intelectual ao longo da narrativa, é o que mais prende à leitura. E Fonseca consegue surpreender, como se já não bastasse tanto súbito em toda trama: o seu protagonista é poeta. Mesmo! Ele revela sua vocação a certa altura da estória, na casa de uma dona, uma dura, que o pegou na rua:

“Ela pergunta o que eu faço e digo que sou poeta, o que é rigorosamente verdade. Ela me pede que recite um poema meu. Eis: Os ricos gostam de dormir tarde/ apenas porque sabem que a corja/ tem que dormir cedo para trabalhar de manhã/ Essa é mais uma chance que eles/ têm de ser diferentes:/ parasitar,/ desprezar os que suam para ganhar a comida,/ dormir até tarde,/ tarde/ um dia/ ainda bem,/ demais./
Ela corta perguntando se gosto de cinema. E o poema? Ela não entende.”

Até aí, o cobrador não tem interlocutor, situa-se fora de qualquer média, acima dos perambulantes da rua como ele, abaixo dos intelectuais, acima dos pequeno-burgueses amantes de comerciais de TV e ignorantes dos direitos de um cidadão.

Não é possível dizer que dá pena ver ele errar na mão por buscar tudo no tiro, na ironia e no tapa. Na ironia porque ele não grita e sempre, ao final de cada ato, ri com descrença dos seus pares ou párias. Não dá para julgar criatura tão deformada pela existência. Chega um momento em que vem uma vontade de torcer para que ele saia daquele lugar onde foi parar. Mas se é um beco, podem pensar os mais apressados!

E daí nova surpresa,  outra bizarrice, desta vez confundida com final feliz. O cobrador ama e é correspondido. Extraordinariamente correspondido por uma branca, ressalta, que mora num prédio de mármore na zona sul do Rio. Vira amador além de cobrador.

Ana, a amada, que ele apelida de “palindrômica”, vai para o subúrbio morar com o delinqüente às vésperas do Natal. Surpresa, ela gosta de armas. Impregna o ar com proposta que cheira a ideologia, mas é pura anarquia. O cobrador agora amador pensa em profissionalizar o estilo. Mas não embarca nos sonhos, continua religioso na descrença.

Hoje é dia vinte e quatro de dezembro, dia do Baile de Natal ou Primeiro Grito de Carnaval. Ana Palindrômica saiu de casa e está morando comigo. Meu ódio agora é diferente. Tenho uma missão. Sempre tive uma missão e não sabia. Agora sei. Ana me ajudou a ver. Sei que se todo fodido fizesse como eu o mundo seria melhor e mais justo. Ana me ensinou a usar explosivos e acho que já estou preparado para essa mudança de escala. Matar um por um é coisa mística e disso eu me libertei. No Baile de Natal mataremos convencionalmente os que pudermos. Será o meu último gesto romântico inconseqüente. Escolhemos para iniciar a nova fase os compristas nojentos de um supermercado da zona sul. Serão mor­tos por uma bomba de alto poder explosivo. Adeus, meu facão, adeus meu punhal, meu rifle, meu Colt Cobra, adeus minha Magnum, hoje será o último dia em que vocês serão usados. Beijo o meu facão. Explodirei as pessoas, adquirirei prestigio; não serei apenas o louco da Magnum. Também não sairei mais pelo parque do Flamengo olhando as árvores; os troncos, a raiz, as folhas, a sombra, escolhendo a árvore que eu queria ter, que eu sempre quis ter, num pedaço de chão de terra batida. Eu as vi crescer no parque e me alegrava quando chovia e a terra se empapava de água, as folhas lavadas de chuva, o vento balançando os galhos, enquanto os carros dos canalhas passavam velozmente sem que eles olhas­sem para os lados. Já não perco meu tempo com sonhos.”

O final da história está no livro. O livro leva o nome do conto, O Cobrador. Vale a pena procurar o cobrador antes que ele procure por um de nós, afinal, ele não se aposentará enquanto persiste o império da injustiça social.


( Ilustração do Blog Via Literatura)



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