sábado, 16 de agosto de 2014

A CLÍNICA QUE VIROU CONDOMÍNIO DE LOUCOS





“Aquilo que jaz no coração de todas as coisas vivas não é uma chama, nem um hálito quente, nem uma faísca de vida, e sim a informação, palavras, instruções.” (Richard Dawkins)

 
Dr Franco da Rocha chegou. A recepcionista gritou e até o louco com pés amarrados aos pés da cadeira se assustou, calou o urro cotidiano por conta própria, não precisou injeção. Dr Marcondes recebeu o colega no meio do corredor, puxou-o para um canto mal iluminado, cochichou veja quem está no quarto em frente. Dona Ribimbóxa. Não era o nome verdadeiro, claro, mas o apelido da matriarca no meio médico.

A mulher cuspiu a dentadura modelada na França a preço de ouro na botina do enfermeiro, que tentava controlar a encrenqueira. Os dois médicos famosos cada qual na sua banda sabiam que iriam lidar com a criatura mais extraordinariamente conhecida na época. Campeã em capa de jornalões, em viagens à Europa, em festas para mais de 500 pessoas, em doações de toda monta para a pesquisa médica.

A filha morreu aos 16, afogada no rio que passava pela propriedade da família. Esta, a notícia oficial, o que de fato ocorrera  -- e disso poucos sabiam -- fora a súbita e irreprimível paixão da menina por um trapezista de circo. O bando de ciganos passou por Pindamonhangaba e dali voltou à estrada com mais um integrante. Dizem que bailarina.

Dona Ribimbóxa se aterrorizou muito mais com a possibilidade de escândalo do que com a perda da filha, pagou mundos e fundos para comprovar um falso atestado de óbito. Convenceu a população valedoparaibana que, compadecida, até deu o nome da pseudofalecida a uma escola de alfabetização para adultos.

A velha senhora tratou de continuar seu circo particular pela vida, não imaginou que tanto faria a ponto de ser despachada pelos seus para um sanatório. Naquele tempo em que a loucura tinha até grau de contágio, diagnosticada por meio de saliva, diziam médicos sem diploma de doutor, qualquer sujeito ou sujeita que ultrapassasse o limite do que era socialmente definido como saudável corria o risco de escafeder-se para sempre num sanatório. Dona Ribimbóxa ultrapassava definitivamente todo limite, ah, como ultrapassava, pois tinha dinheiro. E tanto fez que chegou àquele insuspeito destino, alguém se indignou com tanto excesso e a despachara para a casa de máxima segurança clínica na zona oeste da capital paulista. Dama fina de alto escalão, fingidora até diante do espelho na pia do próprio banheiro, esta a mulher que agora precisavam deter. Nunca soltou uma lágrima, disso se orgulhava.

Dr Marcondes colou o queixo no peito, de tanto que se curvou, culpava-se pelo parentesco com a matrona de pele de alabastro e coices de mula. A tentativa de fingir que a realidade não existia cobrindo-a com um imenso lençol de fantasia, tal e qual os panos com que se cobria mobília de família desaparecida em tragédia natural ou bélica, essa tentativa era tão tipicamente ribimboxiana (continuemos com o codinome já que não se pode nomear demônios sem que sejam chamados à cena) que ninguém queria identificá-la como louca, sob pena de ser assassinado por um cabra de aluguel a mando da mulher e seus asseclas.

Décadas dessa desconjuntura deram no que deram: o conhecido asilo de loucos, ou clínica de doenças nervosas, como a oligarquia preferir, recebia entre seus humildes clientes a criatura tão sobejamente bafejada, supunham, pela sorte.  Como já haviam feito com a filha, os familiares providenciaram novo atestado de óbito: a mãe afinal sucumbira à dor, o coração tivera um colapso.

Houve um enterro na cidade natal, com pompa. A dentadura paga ricamente foi parar no lixo hospitalar, dali roubada e vendida num rincão do Brasil a uma mulher que tinha arcada dentária quase igual. A sertaneja riu como o mar aberto na costa do seu estado natal, já a interiorana definhou em meio a pelancas da antiga gordura.

Emagrecida, velha como veio seco de rio seco, até a morte com quase cem anos esconjurou cada um que cruzasse seu caminho, aconselhava os incautos sabe com quem está tratando? Com a mulher mais rica desse país talvez do planeta. O pior é que era verdade, até hoje a fortuna da família financia a política, mas para efeitos “legais” ninguém dessa família foi, é ou será louco. Apenas desapartados de sentimentos exaltados, no mais, acercam-se de finura e elegância. Todos encantadores.

Nem meio século depois, o sanatório já não existe. O Dr Franco da Rocha virou nome de rua e de uma cidade na redondeza da capital paulista, honrarias extremas, já a falecida rica que alojou por quatro décadas não descansou: continua a perambular no quarteirão que se tornou um bem-sucedido condomínio classe média de arranha-céus, praticamente os primeiros do bairro.  Na mesma medida em que os prédios arranham os céus, as almas que estiveram no antigo sanatório chafurdam a pedra de fundação da casa de saúde, seus urros chegam aos ouvidos dos atuais moradores como zumbido de pernilongo. Ninguém identifica, mas todos odeiam a picada quando a reconhecem. Muitos morrem com choque anafilático.  Outros enlouquecem e protagonizam tragédia moderna. Dona Ribimbóxa lidera os zumbis. 
 
 


A história acima é uma ficção, mas os médicos citados são reais e introduziram a psiquiatria na capital paulista.



Claro Marcondes Homem de Mello nasceu em 5 de novembro de 1866 na cidade de Pindamonhangaba (SP). Formou-se em Medicina e fundou uma casa de saúde no bairro de Perdizes, onde fica a rua que leva hoje seu nome. A clínica ocupava todo o quarteirão entre as ruas Homem de Mello, Franco da Rocha, João Ramalho e Ministro Godói . Também trabalhou no Hospício dos Alienados. Morreu em 23 de fevereiro de 1924. (Fonte: www.homemdemello.com.br/drhomemmello.html).

Francisco Franco da Rocha, profundo humanista, foi membro da Academia Paulista de Letras: ocupou a Cadeira número 3, que tem como Patrono Matias Aires, tendo sido fundada por Luiz Pereira Barreto e, em seguida, conquistada por Alfredo Pujol antes de Franco da Rocha. Sucederam a Franco da Rocha, na Cadeira número 3, Mário de Andrade, Washington Luiz Pereira de Souza e, Lucas Nogueira Garcez. A propósito de Franco da Rocha literato, Lucas Nogueira Garcez, no discurso de ingresso na Academia, em 1958, comentou: “Nas suas obras descobre-se a vocação do escritor: lê-se o “Pansexualismo de Freud” com o prazer de quem saboreia uma verdadeira obra literária". Quando Franco da Rocha faleceu em São Paulo, em conseqüência de enfisema pulmonar, aos 69 anos de idade, em 8 de novembro de 1933, era preciso concordar com a oração fúnebre de Ulysses Paranhos que, em síntese crítica, proclamou-o Pai da Psiquiatria Paulista. (Fonte: http://www.polbr.med.br/ano03/wal0403.php)


 
 

 

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