“Aquilo que jaz no coração de todas as coisas vivas não é uma chama, nem um hálito quente, nem uma faísca de vida, e sim a informação, palavras, instruções.” (Richard Dawkins)
A
mulher cuspiu a dentadura modelada na França a preço de ouro na botina do
enfermeiro, que tentava controlar a encrenqueira. Os dois médicos famosos cada
qual na sua banda sabiam que iriam lidar com a criatura mais extraordinariamente
conhecida na época. Campeã em capa de jornalões, em viagens à Europa, em festas
para mais de 500 pessoas, em doações de toda monta para a pesquisa médica.
A
filha morreu aos 16, afogada no rio que passava pela propriedade da família.
Esta, a notícia oficial, o que de fato ocorrera
-- e disso poucos sabiam -- fora a súbita e
irreprimível paixão da menina por um trapezista de circo. O bando de ciganos
passou por Pindamonhangaba e dali voltou à estrada com mais um integrante. Dizem
que bailarina.
Dona
Ribimbóxa se aterrorizou muito mais com a possibilidade de escândalo do que com
a perda da filha, pagou mundos e fundos para comprovar um falso atestado de
óbito. Convenceu a população valedoparaibana que, compadecida, até deu o nome
da pseudofalecida a uma escola de alfabetização para adultos.
A
velha senhora tratou de continuar seu circo particular pela vida, não imaginou
que tanto faria a ponto de ser despachada pelos seus para um sanatório. Naquele
tempo em que a loucura tinha até grau de contágio, diagnosticada por meio de
saliva, diziam médicos sem diploma de doutor, qualquer sujeito ou sujeita que
ultrapassasse o limite do que era socialmente definido como saudável corria o
risco de escafeder-se para sempre num sanatório. Dona Ribimbóxa ultrapassava
definitivamente todo limite, ah, como ultrapassava, pois tinha dinheiro. E
tanto fez que chegou àquele insuspeito destino, alguém se indignou com tanto
excesso e a despachara para a casa de máxima segurança clínica na zona oeste da
capital paulista. Dama fina de alto escalão, fingidora até diante do espelho na
pia do próprio banheiro, esta a mulher que agora precisavam deter. Nunca soltou
uma lágrima, disso se orgulhava.
Dr
Marcondes colou o queixo no peito, de tanto que se curvou, culpava-se pelo
parentesco com a matrona de pele de alabastro e coices de mula. A tentativa de
fingir que a realidade não existia cobrindo-a com um imenso lençol de fantasia,
tal e qual os panos com que se cobria mobília de família desaparecida em
tragédia natural ou bélica, essa tentativa era tão tipicamente ribimboxiana
(continuemos com o codinome já que não se pode nomear demônios sem que sejam chamados
à cena) que ninguém queria identificá-la como louca, sob pena de ser assassinado
por um cabra de aluguel a mando da mulher e seus asseclas.
Décadas
dessa desconjuntura deram no que deram: o conhecido asilo de loucos, ou clínica
de doenças nervosas, como a oligarquia preferir, recebia
entre seus humildes clientes a criatura tão sobejamente bafejada, supunham,
pela sorte. Como já haviam feito com a
filha, os familiares providenciaram novo atestado de óbito: a mãe afinal sucumbira à dor, o coração
tivera um colapso.
Houve
um enterro na cidade natal, com pompa. A dentadura paga ricamente foi parar no
lixo hospitalar, dali roubada e vendida num rincão do Brasil a uma mulher que
tinha arcada dentária quase igual. A sertaneja riu como o mar aberto na costa do
seu estado natal, já a interiorana definhou em meio a pelancas da antiga
gordura.
Emagrecida,
velha como veio seco de rio seco, até a morte com quase cem anos esconjurou
cada um que cruzasse seu caminho, aconselhava os incautos sabe com quem está
tratando? Com a mulher mais rica desse país talvez do planeta. O pior é que era
verdade, até hoje a fortuna da família financia a política, mas para efeitos “legais”
ninguém dessa família foi, é ou será louco. Apenas desapartados de sentimentos
exaltados, no mais, acercam-se de finura e elegância. Todos encantadores.
Nem
meio século depois, o sanatório já não existe. O Dr Franco da Rocha virou nome
de rua e de uma cidade na redondeza da capital
paulista, honrarias extremas, já a falecida rica que alojou por quatro décadas
não descansou: continua a perambular no quarteirão que se tornou um
bem-sucedido condomínio classe média de arranha-céus, praticamente os primeiros
do bairro. Na mesma medida em que os
prédios arranham os céus, as almas que estiveram no antigo sanatório chafurdam
a pedra de fundação da casa de saúde, seus urros chegam aos ouvidos dos atuais
moradores como zumbido de pernilongo. Ninguém identifica, mas todos odeiam a
picada quando a reconhecem. Muitos morrem com choque anafilático. Outros enlouquecem e protagonizam tragédia
moderna. Dona Ribimbóxa lidera os zumbis.
A história acima é uma ficção, mas os médicos citados são reais e introduziram a psiquiatria na capital paulista.
Claro Marcondes Homem de Mello nasceu em 5 de
novembro de 1866 na cidade de Pindamonhangaba (SP). Formou-se em Medicina e fundou
uma casa de saúde no bairro de Perdizes, onde fica a rua que leva hoje seu
nome. A clínica ocupava todo o quarteirão entre as ruas Homem de Mello, Franco
da Rocha, João Ramalho e Ministro Godói . Também trabalhou no Hospício dos
Alienados. Morreu em 23 de fevereiro de 1924. (Fonte:
www.homemdemello.com.br/drhomemmello.html).
Francisco Franco da Rocha, profundo
humanista, foi membro da Academia Paulista de Letras: ocupou a Cadeira número
3, que tem como Patrono Matias Aires, tendo sido fundada por Luiz Pereira
Barreto e, em seguida, conquistada por Alfredo Pujol antes de Franco da Rocha.
Sucederam a Franco da Rocha, na Cadeira número 3, Mário de Andrade, Washington
Luiz Pereira de Souza e, Lucas Nogueira Garcez. A propósito de Franco da Rocha
literato, Lucas Nogueira Garcez, no discurso de ingresso na Academia, em 1958,
comentou: “Nas suas obras descobre-se a vocação do escritor: lê-se o “Pansexualismo de
Freud” com o prazer de quem saboreia uma verdadeira obra literária". Quando
Franco da Rocha faleceu em São Paulo, em conseqüência de enfisema pulmonar, aos
69 anos de idade, em 8 de novembro de 1933, era preciso concordar com a oração
fúnebre de Ulysses Paranhos que, em síntese crítica, proclamou-o Pai da
Psiquiatria Paulista. (Fonte: http://www.polbr.med.br/ano03/wal0403.php)
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