domingo, 28 de setembro de 2014

ONDE POUSAM AS ASAS DO DESEJO?




Dias de resfriado e frio fora de hora. Setembro em que nasci e, neste ano, me traz a notícia da morte de um amigo. Daquele tipo de amigo que é amigo de todo mundo. Que se sabe introspectivo, porém dado a sorrisos. Estatura elevada, nunca passou despercebido, cabeça curvada, talvez para ser melhor escutado ou para se adaptar às medidas de um mundo que compacta até sentimentos só para aumentar espaço útil ao fútil.

Esse amigo morreu porque entendeu, não se sabe se explicou aos próximos, que devia partir. Partir para não sair do lugar, essa a definição que Valter Hugo Mãe faz da morte. Quem há de discordar?

Há quem imagine caminhos sinistros ou luminosos para os que morrem. Há quem idealize reencontros com esses. Outros não alimentam esperanças. Nem descrença. Apenas não sabem o que será.

Então o único fato da morte é o cemitério. Não vamos nos ater às urnas dos que optam por se tornar cinzas e que, romanticamente, expressam o desejo de ser despejados nos mares ou montanhas, nas paisagens que lhes acenam com o alento do descanso.

Para os que retornam ao pó da terra, a partida é ainda mais ilusória já que podem até mesmo ser visitados no túmulo: "a morte é mais o aprumado das campas como mesas postas ao contrário. mesas servidas a convidados nenhuns...", diz Valter Hugo Mãe.

O escritor português faz uma incursão sem retoques à velhice e à morte no livro "A máquina de fazer espanhóis" (Cosac Naify, 2011). Nascido em 1971, não foi apresentado, ainda, à terceira idade. Tampouco a viveu por meio do pai, que morreu cedo. É esta perda prematura, justamente, que leva Valter a inventar uma velhice para ele e seu pai. Um tipo de encontro em meio a reflexões sobre temas que desonhece.

Mas o que é verdadeiramente desconhecido para a sensibilidade de um escritor? Viagens para destinos exóticos no mundo, talvez, mas o prosaico da vida se revela a seu jeito. É o que este livro comprova. Preconiza que a memória é um jeito de existir e descreve memórias do futuro em que o autor enfim será um velho, talvez viúvo de um grande amor, encostado num asilo pela família, como peça de mobiliário em dissonância com o design moderno.

É tudo um susto, ou sucessivos sustos, com os quais o protagonista é forçado a se acostumar. Um dia se assenta no desconforto dos 84 anos e ensina: "andar pelo cemitério é a última coisa de velho a entrar-nos na cabeça. é o que verdadeiramente nos torna velhos sem regresso, diferentes dos outros humanos. afeiçoamo-nos à morte. é como se fôssemos cortejando a confiança dessa desconhecida, para nos encantarmos, quem sabe. ou para percebermos como lhe poderemos escapar ainda. coisas diversas e complementares, porque os nossos sentimentos vão oscilando entre uma necessidade de ultrapassar o impasse do fim da vida, e o trágico de que isso se reveste."