Dia 26 de novembro de 2012, Mário Lago completaria 100 anos. Morreu em 2002 sem contas a acertar com a vida. Fez tudo o que quis, dispensando já aos 13 anos a casaca de diplomata da qual a mãe fazia questão. Justificou para o filho: “Você é alto, magro, vai cair muito bem”.
Lago tinha outros planos e, apesar da pressão contra,
ninguém na casa tinha moral para reclamar. O pai e avós, além de tios, eram
todos músicos, como Mário que, já aos 15, fez uma marchinha para a namorada,
com declaração de amor ditada pela militância política, outra vocação. Dizia:
“nosso amor vai melhorar quando vier a Constituição”.
Com esses versos, o adolescente selou o destino definitivo e
um elefante branco invadiu a sala de visitas da casa. O pai sentenciou: “Você
está treinando para profissão de fome”.
Ainda bem que não foi praga, nem foi de coração, não pegou.
Mas dinheiro, a julgar pelo que o Mário personagem público expunha, nunca
sobrou. Nem faltou. Em entrevista no programa “Ensaio”, da TV Cultura, Mário se
aventurou a fazer uma conta de cabeça. Complicou-se tanto que ninguém conseguiu
sequer ajudá-lo. Explicou que foi reprovado três vezes em matemática e soltou a
piada, já que bom humor, sim, esbanjava: “Eu não sei somar, por isso sou pobre,
sei menos ainda multiplicar”.
Este é "o" Mário, segundo contam a lenda, a
história e seu filho, Antônio Henrique Lago, jornalista, que faz aqui um rápido
e delicioso perfil do pai. Antônio Henrique tem o mesmo humor e convicções do
pai, além de já ter produzido obras memoráveis no campo da reportagem.
Acompanhe a entrevista que fiz, a seguir:
Ator, produtor,
diretor, compositor, radialista, escritor, poeta, autor de teatro, cinema,
rádio e TV, frasista (que eu trocaria por “filósofo do cotidiano”), militante
sindical, ativista político e boêmio. Está tudo lá, no site oficial do Mário
Lago. Entre tantas facetas, uma ou algumas se sobrepunham a outras?
Antônio Henrique Lago - O político sempre. Discutia as
questões brasileiras diariamente com a família, amigos, o motorista de táxi,
qualquer um que puxasse conversa. A pregação por uma sociedade mais justa e
igualitária jamais ficava escondida ou em plano secundário. Papai nunca perdeu
uma campanha política. Comunista por formação ideológica, sempre apoiou os
candidatos de esquerda e do seu partido.
Mas há também o ator, sempre, porque este foi uma parte
importante da vida profissional dele. Dar vida a personagens era parte do “ser
Mário Lago”. Fazia laboratório sozinho para enriquecer o papel, discutia com o
autor e diretor todas as cenas. Atuar era um exercício de vida!
E o escritor/autor/poeta, igualmente, sempre. Nos intervalos
de gravação, nas férias, ele criava sempre um projeto para escrever. Durante as
filmagens de O Padre e a Moça, recolheu material para um livro sobre o Chico
Nunes das Alagoas, repentista e boêmio. Numas férias, traduziu a peça Fuente
Ovejuna, do espanhol Lope de Vega. Do mesmo modo, escreveu uma peça sobre a
revolução dos alfaiates - Foru Quatro Tiradentes na Conjuração Baiana -- que
acabou censurada. Nunca deixou de compor, não havia como conter os versos.
Em casa, quais
características pessoais predominantes você enumeraria?
AHL - Conversa franca, sobre qualquer assunto. Respeito às
decisões de cada um da casa. Clima muito democrático.
Boêmio em um casamento
que durou a vida toda. Como o Mário dividia o tempo entre o amor/família e as
paixões, como a arte. Ficava em déficit com um lado ou outro?
AHL – Olha, papai sempre ia para os locais da boemia e
levava minha mãe junto, mas eu lembro de ele chegar para uma conversa noturna
sobre política, meus estudos - às vezes ele até me ajudava com os trabalhos
escolares. Discutíamos minhas decisões pessoais e ele sempre respeitou as
minhas escolhas. Ele e mamãe tinham a democracia entranhada no corpo e na
mente.
Como era a casa do
Mário? Um burburinho de música, amigos, festas? E o silêncio para criar, também
habitava esse lar de artista?
AHL - A porta da casa de papai estava sempre aberta. Dolores
Duran ia lá mostrar músicas. Carlos Marighela ia lá discutir coisas do PCB.
Meus amigos e companheiros de militância política iam lá conversar. Era assim
desde que me entendo por gente.
Na hora de criar, papai ia pro quarto, fechava a porta e se
transportava para a criação, quer fosse para estudar as falas de um personagem,
quer fosse para tocar o projeto de um livro.
Em uma frase, na sua
opinião, qual o maior legado do Mário para:
- Você, filho
AHL - A defesa de uma sociedade justa e igualitária com o
fim da exploração do homem pelo homem.
- A arte
AHL - Grandes interpretações como a do pescador Santiago, de
O Velho e o Mar; e o Atílio da novela Casarão. Os versos de Nada Além, de Aí
que saudades da Amélia e Aurora.
- A sociedade
AHL - Um exemplo de coerência política, honestidade de
princípios. Tudo parte da luta pela sociedade sem exploração e opressão.
Sem segunda opção,
qual música, filme (como ator ou diretor), papel na TV você colocaria como
número 1 no ranking das criações do Mário?
AHL - Como música, eu gosto mais, puramente pessoal, do Nada
Além. Mas sempre me emocionei muito nos bailes de carnaval ao ouvir o povo
cantando Aurora. O Padre e a Moça, de Joaquim Pedro de Andrade, como filme. E
papel na TV foi o Atilio, do Casarão.
Mário criava
compulsiva ou metodicamente? Há ainda muita produção dispersa, inéditos? O que
podemos esperar?
AHL - Papai era um criador compulsivo/metódico. Ele não
podia ficar parado. Se não estivesse gravando, estava bolando algo e
escrevendo.Escrevia, depois lia, corrigia, mudava, lia de novo e assim por
diante, até ficar satisfeito.
O Mário era
polivalente e multimídia. Como ele se relacionava com as novas tecnologias?
Chegou a incorporar essa linguagem internética a seus trabalhos?
AHL - Papai não chegou a usar a tecnologia multimídia
moderna. Ele exercia a multimídia pessoalmente. Acho que a formação sem a
internet bastou para ele. Além do que ele conviveu muito pouco com a internet.
Qual, na sua opinião,
foi a grande realização dele no campo das artes? De qual ou quais obras ele
mais se orgulhava?
AHL - Papai achava que cada texto, música e personagem eram
um sucesso particular e parte do todo que ele considerava o melhor da sua obra.
Ele realmente gostava de tudo que fez.
E na política, qual a
grande conquista e a grande frustração na sua vida de lutador?
AHL - Ele tinha muito orgulho de ter participado do comando
da greve dos radialistas de 1962, que resultou na regulamentação da profissão.
E de ter participado das lutas pela liberdade e ter visto as quedas das
ditaduras de Getúlio Vargas e dos militares. Acho que frustração foi a de ver
que o homem ainda vive numa sociedade intrinsecamente injusta e exploradora.
Pacifista e
inconformado, por isso mesmo eterno militante, que causa ou causas você acha
que ele defenderia hoje?
AHL - Acho que ele continuaria a lutar contra a exploração
do homem pelo homem. E, é claro, as causas ambientais também estariam entre as
suas preocupações.
Fonte: Portal Vermelho
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