terça-feira, 6 de agosto de 2013

O VELHO E AS ALEGRIAS ENVELHECIDAS






Esperar o dia da morte é um exercício inútil, não gratifica, enterra coisas boas prematuramente, traz um esquecimento, que não é mal de Alzheimer, é pior, apaga lembranças de sonhos e das alegrias simples ao alcance de todos.


Coisa de americano. Foi a minha conclusão quando li o título do filme que iria passar na sessão das 10 na televisão, Gran Torino. Estupidez a minha não saber que o nome referia-se a uma marca de carro da Ford, associei com Máfia, tourada, velho oeste, sabe-se lá quantas bobagens me passaram pela cabeça. Por pura inércia, corpo afundado na poltrona, assisti às primeiras cenas, e segui já sem inércia, mas com certa incredulidade, até o desfecho final.

Com certeza o filme era coisa de um americano, Clint Eastwood, e superou minha expectativa, nada da historinha manjada de um velho ranzinza que não se entende com a família. Nem com o mundo. Suicida-se dia-a-dia com um cigarro sempre aceso na boca, espanta intrusos com armas e arrogância, cospe no chão para estranhos e seres que julga inferiores, cospe sangue como um desenganado quando tosse escondido de todos.

A SOLIDÃO DOS CARRANCUDOS

Clint é um velho chato solitário, veterano traumatizado da Guerra da Coreia, racista... para piorar, tem uma família típica de classe média, movida a consumo e a soluções óbvias que dinheiro compra. Sugerem que o velho se mude para um residencial de idosos na tentativa de reinserir-se, após a morte da esposa, num contexto social amigável.

Aqui, me identifiquei com o desatino de Clint, que colocou filho e nora para fora da casa batendo a porta. Estavam equivocados. Velho não ativa neurônios ou libido jogando gamão com contemporâneos ou indo a bailes patéticos de terceira idade. Foi naquele momento que percebi, claro como raios de sol surgindo atrás de mata fechada, que velho não tem que viver com velho, é sectarismo. Se há vida, há lições para aprender e é na sociedade com sua diversidade que aprendemos, jamais em escolas dogmáticas.

Os cabeças-duras vão discordar, preferem cultuar hábitos em altares, distribuem provérbios gastos como ouro em pó, criam espinhos como ouriço. Esperam a morte redentora mergulhados na infelicidade inconfessável, nem entre quatro paredes. Muito menos a um padre.


O padre é que dá início à transformação de Walt, nosso protagonista viúvo e durão. O jovem de 27 anos quer e persegue uma confissão, para atender o último pedido da falecida, “ovelha de seu rebanho”. Consegue ser expulso da casa não sem antes ouvir barbaridades sobre a sua virgindade e inexperiência.

Aqui a trama faz um desvio de rota. Resumidamente, Waltt passa a conviver com orientais e negros, que despreza, com gangues e violência, revê conceitos, então defende uma família de imigrantes e nela, tão diferente da sua, reencontra a auto-estima e o significado dessa nova etapa da existência. Rende-se ao afeto por um garoto, Tao, e entrega a vida para que esse garoto e sua irmã, excluídos sociais, consigam se livrar de ameaças maiores e vislumbrar um futuro livre de estigmas.


De um lado, sorrir quando é agredido, verbal ou fisicamente, aceitar oferendas de
uma comunidade que o julga heroi segundo generosos parâmetros, compartilhar refeições antes de compartilhar afinidades, render-se a verdades xamânicas (o que é isso mesmo?) inegáveis. Do outro, servir a um velho carrancudo em obediência a ordens da mãe, sustentar o primeiro passo de garoto em direção a um mundo muito diferente do seu, o do homem americano. Assim Walt e Tao aprendem juntos, seguindo em autodescobertas que partilham sem pudores nem palavras.

O mais importante nessa amizade nascente e na reviravolta da história é perceber como o relacionamento entre os personagens, a princípio imposto, cria uma dinâmica que o velho homem desconhecia, desperta a tolerância e a aceitação que ele nunca soube praticar. Walt descobre com estranhos laços que jamais teve com sua família.
O final é impactante, traz o dilema de escolher entre a violência e a rendição estratégica, essa última vence o ódio e elimina de vez os marginais da vida dos ameaçados estrangeiros. O caminho dos jovens se abre para novas oportunidades, o coração do velho para de bater em paz. E se há vida após a morte, certamente um sorriso acompanhou Walt ao outro mundo.

ALEGRIAS SIMPLES AO ALCANCE DE TODOS

Quando o desespero e o ceticismo se instalam, a salvação vem do improvável, mas só pode ser encontrada se trilharmos caminhos diferentes dos habituais, se nos aventurarmos e corrermos riscos. Walt sofreu ao ver seus novos e únicos amigos sofrerem e foi a dor que lhe tirou da pasmaceira cotidiana.

Esperar o dia da morte é um exercício inútil, não gratifica, enterra coisas boas prematuramente, traz um esquecimento, que não é mal de Alzheimer, é pior, apaga lembranças de sonhos e das alegrias simples ao alcance de todos.

Viver é um ato que se empreende até o último suspiro, qualquer retirada antes do momento final é covardia e privação. É tristeza, rugas em proliferação, solidão e angústia sem salvação.



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